terça-feira, 27 de julho de 2010

Anjo de uma asa só

Vai entender. Por ironia do destino veio trabalhar comigo, temporariamente, uma jovem de trinta anos, pequena e ao mesmo tempo imensa, frágil e forte. Ele é dois pólos, duas vidas, duas pessoas dentro dela mesma, lutando uma com a outra pela sobrevivência. Lembra-me um anjo de asa só, machucado, em constante sofrimento. Em compensação nos dias de calmaria um sorriso terno. Por que o destino cruzou nossas histórias eu não sei. Sei que preciso fazer alguma coisa para aliviar tamanho sofrimento. Sei que me comovo com sua dor, sei que valorizo cada pedaço das minhas feridas, as curadas e as em processo de cura. Sei que rezo para Maria.

Angustia é como ter um gato chiando no peito, a gente sabe que ele está lá, sentimos sua presença, mas não conseguimos pegá-lo. Acho que foi Zélia Gattai quem escreveu algo assim em um de seus poemas. Já falei em uma crônica que é mais fácil entender, não quer dizer aceitar, a pressão alta, diabetes, dor de cabeça, gastrite. Mas uma tristeza tamanha, dia e noite, acorrentada na alma, que não cessa nunca é um peso grande demais para carregar. Essa mocinha que agora divide algumas horas comigo carrega esse saco há dez anos.

Dias felizes, normais. Dias tristes e cinzentos. Segue assim o calendário da natureza pulando do verão ao inverno. Dias de mais e de menos roupas.

Com a pequena grande Ana não é assim. Não há trégua. Ela chora dia sim e dia não. Chora baixinho, chora calada, chora sozinha, chora o choro do mundo.

O que eu posso fazer? Ainda não sei. Mas escrever esse desabado já me fez um bem danado. Agora é correr atrás de alguém que seja capaz de aliviar esse peso, que tenha as armas para o bom combate. Um combate que não será pequeno. É um exército de um homem só, mas ele é duro de cair, forte pra chuchu resistente como o bambu.

E eu? Eu busco com paciência todo o meu vocabulário de auto-ajuda acumulado. Tenho fé e acredito que essa dor vai passar. Só que não é simples assim. Não basta água com açúcar. Também acho que outro anjo, dessa vez completinho, com duas asas foi quem levou essa pequena para o meu endereço. Nada é por acaso. Há lições que precisamos aprender e quem escolhe os meios nem sempre somos nós. É possível mudar de rota, chutar as pedras do caminho, fazer de conta que não é com a gente, tirar o incomodo de cena ou sair da zona de conforto e fazer alguma coisa. Eu fico com a segunda opção.


 


 

Andréa Muller

Jornalista

 

De tudo um pouco

Estou mega atrasada com esta crônica. Meu compromisso é enviá-la sempre as segundas-feiras para a queridona da minha editora. Desde que comecei a escrever, em outubro de 2009, não falhei no prazo um dia sequer. Dessa vez, é terça-feira, e eu ainda estou aqui na introdução, sem ter a mínima idéia de como encher essa página com dois mil e quatrocentos toques. Pensei em falar sobre o título do último livro que minha filha comprou e que chegou ontem pelo correio "As vantagens de ser Invisível". Não achei nenhuma inspiração, mas talvez volte ao tema porque creio seria uma experiência fascinante. Pensei em escrever sobre o meu sábado, quando fui à festa junina da Escola e passei uma tarde super agradável de um inverno totalmente com cara de verão, sentada em baixo da árvore com outras mães falando de filhos, de soltar ou puxar a corda da educação, comparando a nossa com a deles etc. Eu continuo achando que aquela liberdade que a gente tinha de ir e vir foi o melhor da nossa juventude. O máximo que a gente encontrava pelo caminho eram os tarados, aqueles desocupados que ficavam na beira dos parques e quando as mocinhas passavam eles abriam a bragueta e a gente saia correndo. Esse era nosso maior perigo. Mas eles eram apenas exibicionistas inofensivos. Nunca li nas manchetes dos jornais que nenhum tenha atacado ninguém.

Hoje, somo mães lotação – nada parecido com o filme "A dama da Lotação" que consagrou Sônia Braga. Vivemos em cima do carro levando e buscando filhos para todo o lado porque simplesmente não podemos deixá-los ir sozinhos porque correm o risco de voltar sem os tênis e o celular. Acho que só deixaremos de ser Kombi escolar quando eles virarem motoristas porque andar a pé virou coisa perigosa. Ou será que é exagero nosso?

Pensei em falar sobre a história engraçada que uma amiga me contou. Ela estava na fila dos pães no supermercado e na frente dela havia uma mulher bem gorda. Ela, a minha amiga, vive de regime, pra magra ela não serve, assim como eu. Quando a balconista perguntou pra moça o que ela queria ouviu: dois sonhos de doce de leite. O pensamento das mulheres é espetacular. Minha amiga pensou rapidamente por isso que é gorda, a essa hora da tarde entrar na fila para pedir dois sonhos e mais nada. Quando chegou a sua vez, minha amiga toda prosa respondeu a pergunta da balconista. Pra senhora? Seis cacetinhos. Algo mais? Dois sonhos de doce de leite. Toma. Adeus regime. Esse sonho deve ser um espetáculo.


 


 

Andréa Muller

Jornalista

 

Cultivar as amizades

Prá gente ser feliz tem que cultivar as nossas amizades, os amigos de verdade. Prá gente ser feliz... Eu compartilho dessa verdade cantada por Toquinho e vou além: no coração daqueles que gostam de amigos sempre cabe mais um.

Tenho amigas de várias épocas. Não vejo algumas há bastante tempo, mas continuamos amigas. Lembro como se fosse hoje de um encontro que fizemos em janeiro de 1999 em um bar de Porto Alegre. Éramos cinco. O papo corria livre e quando fizemos as contas, descobrimos que nos conhecíamos há quase dez anos. Dez anos! Hoje, fazem mais de 20 e continuamos amigas. Amizade não envelhece.

Nossa amizade nasceu do trabalho. Todas, em algum momento, dividimos o suor pela mesma empresa. Tínhamos vinte e poucos anos, muitos projetos, mínimas contas, gostos menos sofisticados e poucas marcas. Hoje, a lista é imensa: prestação do carro, casa, celular, supermercado. E as marcas, Ah! As marcas: lâncome, clinique, pequenos detalhes que revelam a passagem do tempo. Só o amadurecimento, a segurança de uma renda nossa ou do marido (por mais que sejamos feministas até embaixo d'água) nos permite certas contas e preferências. Quando nos conhecemos, éramos mais simples, o que quase todo mundo é quando tem vinte e poucos anos: pouca grana, muita sede de viver e virar gente grande.

Dia desses saí com outro seleto grupo de amigas. Somos dez e temos um Clube que não posso revelar o nome. Mas é classudo. Todas únicas e ao mesmo tempo tão iguais depois do primeiro gole. Pode faltar saliva, mas assunto jamais. Encontramo-nos menos do que gostaríamos. Se a preguiça não nos contaminar, tomara que não, se uma sempre tomar a iniciativa, tomara que sim, a gente vai continuar encontrando-se pelos anos afora, em volta de uma mesa e fazendo a nossa terapia em grupo, atualizando assuntos profissionais, falando de e sobre os maridos, filhos, namorados. Falando coisas que os homens não entendem. Melhor assim.

O simples fato de cada uma abrir sua boca e dramatizar, sim porque mulheres não falam, elas encenam o que lhes acontece, o que as aflige, o que está tão bem. De A a Z tudo tem o dom de aliviar, acalmar, tornar tudo mais real, pra quem fala e pra quem escuta. Se às vezes só rolam assuntos do passado, parece uma volta ao tempo e, quando acaba, pisamos no chão para ter a certeza de que estamos em 2010.

No abrir e fechar de potes de cremes diários sempre lembramos umas das outras, com amizade, com preocupação e com pautas para os próximos encontros.


 

Andréa Muller

Jornalista


 

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Inferno astral

Todo ano passo por um período onde as coisas não parecem fluir como sempre. É um somatório de pequenos acontecimentos desgastantes capazes de chatear qualquer um. Eu me sinto como um bambu na tempestade, envergando, mas ainda assim de pé. Quando alguém me cumprimenta e pergunta tudo bem? Eu já vou logo escancarando: mais ou menos, estou no meu inferno astral.

Sim, isso é verdade e compreende exatamente os trintas dias que antecedem nosso aniversário. Existem algumas explicações para entender estes trinta dias temidos antes da inauguração de uma nova idade. O aniversário nada mais é do que o marco de um novo ciclo solar na vida de uma pessoa, ou seja, o Sol passa pelo mesmo ponto do Zodíaco que estava quando nascemos sinalizando uma nova etapa para a nossa consciência. Os dias que antecedem esta renovação são exatamente os últimos do ciclo anterior que a consciência vinha atravessando. Os ciclos representam na Astrologia os estágios de todo e qualquer processo de desenvolvimento e o final de um ciclo se caracterizam pela agitação, mudança, instabilidade e desordem, somadas à insegurança em relação ao futuro que está por vir.

Então, melhor relaxar. Nada de grave me aconteceu. Foram pequenos acontecimentos, alguns hilários, que me roubaram um pouco a graça. Mas, se no dia do "A" eu estiver linda e formosa é a conta. Gosto tanto de aniversário que até no elevador diante de estranhos já vou logo avisando para me cumprimentarem porque é meu aniversário.

Fui ao centro da cidade para uma consulta, saí de casa em cima do laço já com os sessenta centavos para pagar o parquímetro na mão. Parei em frente ao local, caminhei até o parquímetro, paguei, peguei o ticket, voltei até o carro, abri a porta e coloquei o papel no painel, do lado do motorista. Quando fechei a porta do carro o papel voou para o lado do carona. Fiz a volta, abri o carro, peguei o papel e o coloquei de volta. Quando fechei a porta ele voou de novo, só que dessa vez desapareceu feito fumaça. Procurei no chão do carro, no painel, nos bancos, no lixinho e nada. O relógio seguiu sua vida e a minha consulta com hora marcada também. Voltei ao parquímetro para pagar de novo. Quando abri a carteira só tinha dinheiro em notas. Voltei até o carro porque lembrei que tinha umas moedas no console. Peguei um real e voltei ao parquímetro. Já tinha pagado meia hora, paguei mais uma. Voltei até o carro, abri a porta, coloquei o papel no painel e quando fechei a porta adivinhem o que aconteceu? O papel voou de novo. Ficou paradinho do lado direito do vidro, do lado do carona. Desisto. Avisei o porteiro do prédio onde eu tinha consulta, que pelo amor de Deus me defendesse. Moço: se o azulzinho aparecer o senhor, por favor, diga a ele que o papel não está no lugar porque voou.

Outra boa: acendi a lareira e fique mais ou menos duas horas sentada num pufe brincando com o fogo. No dia seguinte acordei entrevada, minha lombar parece que havia sido pisoteada por um elefante. Num tempo longo pelo calendário mais logo ali segundo a minha memória, eu passaria a noite inteira sentada em posição de índio e acordaria com o mesmo corpo.

Andréa Muller

Jornalista

Uma palavra

Essa semana a mulherada andou trocando um e-mail intitulado "Descreva-me". A brincadeira era responder definindo a outra pessoa com apenas uma palavra. Não acho difícil descrever alguém em apenas uma palavra. Ao contrário, acho até mais fácil do que escrever um tratado. A idéia bem que poderia pegar, assim resumiríamos cartões de aniversário a apenas uma palavra. Mas com a pressa e a correria acabei não respondendo nenhum dos emails.
Só que durante a semana estivemos juntas, quase todas as que haviam enviado os emails. O resultado foi uma dose cavalar de auto-estima coletiva. A mim coube a seguinte descrição: habilidosa, incrível, criativa, Ilma, aqui, leia-se pessoa ilustríssima, transcendental e altoastral. Neste caso, como só podia uma palavra, nos permitimos uma licença poética de assassinar por um pequeno instante a língua portuguesa.

Enquanto escrevo pula-me na memória o grande e maravilhoso poeta amazonense Thiago de Mello, sempre vestido de branco, autor de 30 livros de poemas sobre a Amazônia e o meio ambiente. Sua obra mais conhecida é "O Estatuto do Homem", onde decreta que "todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo" ou que nada será obrigado nem permitido. Tudo será permitido, sobretudo brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela. Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida: amar sem amor.
Seguimos com as benditas descrições. Faltam seis. A R é amorosa, zen, sentimento, paciente, iluminada e meiga. A M é divertida, amorosa, sincera, iluminada, transparente e humana. A outra M é leal, sentimental, dinâmica, camaleão, energia e amiga. A terceira M é amiga, contagiante, comprometida, inebriante, alegria e eletrizante.  A C é serenidade, meiga, amiga, eficiente, vulcão e discreta. A G foi a única que recebeu sete descrições. Teve gente que não se conteve na explosão dos sentimentos. Ela é equilibrada, amiga, honesta, coração, lealdade, habilidade e espirituosa.
Bem, vocês devem estar se perguntando como é que eu consegui gravar na memória todos esses maravilhosos atributos. A M escreveu tudo pra mim num guardanapinho de papel.
Pequeno detalhe: junto com todas as descrições estava escrito Sant alma. Como eu não lembro absolutamente o que isso significa me permito deduzir que somos todas verdadeiramente Sant almas, ou seja, saltas almas que ainda conseguem encontrar tempo para fazer uma das melhores coisas da vida: não fazer nada ao lado dos nossos melhores afetos.


 

Andréa Muller

Jornalista

 

On line, por que não?

Existe uma discussão recente sobre a terapia feita via computador, a webterapia. Os conselhos profissionais que regulamentam a profissão têm restrições. Eu, particularmente não tenho nenhuma. Mas antes que comecem a me jogar pedras e a dizer que eu não tenho nada a ver com isso já vou logo avisando: isso é apenas uma crônica e eu uma jornalista que por coincidência faz psicoterapia.

Estamos na era do computador, sim estamos! E ele é sensacional quando bem usado. É uma ferramenta que resolve muitas coisas. Com o computador você trabalha, lê, pesquisa, se diverte, interage, faz compras, vê filmes, namora, mata a saudade de quem você não vê todo dia. Uma amiga minha fez entrevista de emprego pelo computador e foi selecionada para trabalhar em uma empresa do Pará.

A mídia mais rápida até a chegada do computador era o rádio e continua sendo. Ele não perdeu a sua função desde que o computador foi criado. São ferramentas distintas. O computador é útil quando é bem usado e, não vamos dourar demais a pílula, ele tem limites. O computador também não acabou com os jornais impressos nem com as revistas. Com o computador podemos buscar a informação, não precisamos ficar esperando por ela. Ele é mais um meio de comunicação, indiscutivelmente, importante. Usado com bom senso o computador é tudo de bom. Ele não substitui as pessoas, os beijos, os abraços, os cheiros, mas ele te leva até as pessoas, até a informação, aos fatos e nunca substituirá nada do que é mais bem feito ao vivo e a cores. Ao contrario, é capaz de aguçar esses desejos. Convenhamos: não se pode beijar pelo computador.

Eu acordei me sentindo o bichinho da goiaba, meu cabelo está horrível, não fiz pé nem mão, comi feito um javali no fim de semana e ainda por cima, pra completar, chove lá fora. Qual o problema de eu ficar em casa e comprar aquele livro que eu tanto quero pelo computador. Outro dia, acordei o oposto: linda, loura e magra, a própria Maitê Proença encarnada. Neste dia eu resolvo ir pessoalmente à loja e comprar olhando nos olhos do vendedor. Qual o problema?

Eu faria terapia via computador com toda a certeza. Não vejo nenhum problema. Terapia é conversa, é troca, é apoio firmado pelo diálogo. Conversando a gente se entende e hoje, conversar é a coisa mais fácil que existe, também, graças ao computador. A questão é se queremos conversar ou somente teclar.


 


 

Andréa Muller

Jornalista

 

domingo, 25 de julho de 2010

Memória de Infância

O zoológico é um daqueles passeios praticamente obrigatórios na nossa existência. Passar pela vida e não visitar o zoológico é como ir a Roma e não visitar o Vaticano, ir a Paris e não visitar o Museu do Louvre, ir a Buenos Aires e não visitar o Caminito. Pois bem, no último feriadão eu me aventurei em uma ida ao Zoológico acompanhada de três pessoas, elas me fizeram jurar que eu não diria quem são. Ok vou respeitar.

Que eu lembre, a última vez que fui ao zoológico eu deveria ter uns nove anos de idade e ainda andava de mãos dadas com meus pais. Depois disso, acho que foi agora, aos quarenta e três. O zoológico continua exatamente o mesmo, não mudou absolutamente nada. O lugar continua honesto nas lembranças.

O lugar me lembra um cheiro forte, uma mistura de fezes de diversos animais com cheiro de gambá ou zorrilho, sei lá. Esse cheiro ainda está lá! É o cheiro característico do lugar.

Em relação às comilanças a honestidade também permanece. Lá ainda se vende o que se espera de um Zoológico, ou seja, pipoca, algodão doce e maça do amor. Graças a Deus, os chips, os crepes, e o Mcdonalds estão longe desse lugar, ainda.

Todos aqueles animais que povoam nosso imaginário infantil continuam lá para a alegria de seus visitantes. Avistei muitas crianças e jovens acompanhados de seus pais, tios, madrinhas, avós, enfim gente querida que levava pela mão gente querida também. Até porque ninguém vai passear no zoológico com seus desafetos. É um risco.

O leão está velhinho velhinho, mas ainda consegue uivar de forma amedrontadora como convém ao Rei da Selva. Seguem vivendo um anoitecer após o outro os macacos, urso, zebras, antas, girafas, cobras, tartarugas, elefantes, hipopótamos, camelos, jabuti, lobos, jacarés e uma centena de aves coloridas de verdade. Aquilo é que é policromia pura.

Foi um passeio agradável se não fosse por um detalhe: o local é extremamente mal sinalizado e eu acabei caminhando além da conta por um caminho que eu imaginei que daria na saída. Morta de cansaço refiz o caminho de volta porque a saída era para o lado oposto. Eu já estava me sentindo a própria vovozinha sendo comida pelo Lobo. O sol se pondo e eu presa lá dentro. Sinceramente, esqueci minha idade. Senti-me uma garotinha assustada, usando rabo de cavalo e com o coração que parecia querer saltar pela boca. Ainda bem que as minhas três acompanhantes nem perceberam, porque ali eu era a mão que segurava as outras e dessa mão nunca se espera a fraqueza, embora ela exista também.


 

Andréa Muller

Jornalista

 

Sequestro

Dos relacionamentos que você já teve, quais foram as ocasiões em que verdadeiramente você foi modificado para melhor? Será que você é lembrança doída na vida de alguém? Será que já construiu cativeiros? Ou será que já viveu em algum"? Estas frases estão na orelha do livro Quem me Roubou de Mim, do Padre Fábio de Melo. É o segundo livro dele que leio e gosto. Por que eu comprei esse livro? Encantei-me pelo trechinho a seguir: "não é mais um livro de teoria da vida, mas é a vida de uma teoria. Ele não nasceu do aprendizado acadêmico. Nasceu dos olhos que um dia me olharam e pediram ajuda. Gente que precisava sair dos cativeiros dos afetos, das dependências viciosas, das autoridades arbitrárias e das violências veladas. Não, essa gente não trazia correntes nos pés, nem nas mãos. As correntes estavam na alma, onde nossos olhos apressados não chegam, porque a dor mais profunda requer calma para ser encontrada".

Não me arrependi nadinha. São 148 páginas deliciosamente bem escritas, envolventes e que me levaram a ficar boas horas pensando na vida, nos afetos retidos e naqueles perdidos. Quantas pessoas já passaram por nossa vida? Com quantas ainda estamos verdadeiramente? Quantas nunca mais ouvimos falar, mas volta e meia nos invade a lembrança? Quantas nos fizeram tanto bem e outras tanto mal? Elas sabem disso? Por que nunca falamos? Respeito, juízo, necessidade, vergonha, falta de coragem?

Daqui em diante, nesta crônica, todas as aspas são do livro. Podem chamar de falta de imaginação para escrever essa semana. Talvez tenha sido mesmo. Ficamos um bocado de tempo nos olhando: o teclado e eu. Quem venceu? Os trechos a seguir venceram a corrida dos espermatozóides até o óvulo e aqui está a criança. Pena que não seja minha, mesmo assim é um grande amor que está sendo compartilhado.

"Um novo amor que chega é encantador, mas não é único. Ele é recém-chegado. Depois que ele chegou, a nossa vida, nosso mundo, diminuiu ou dilatou-se?... Somos todos desejantes. O que gostamos no outro é o que sobra do encontro que realizamos com ele. É a terceira pessoa, é o que nasce do encontro... Não, a vida não é um conto de fadas, mas nem por isso estamos privados da felicidade que eles nos sugerem. Precisamos entender que não existe ser humano ideal. O que existe é o ser humano certo. O ser humano certo tem defeitos, qualidades, e na soma de tudo é um resultado em que você resolve acreditar".

Lindo de ler, lindo de viver.


 

Andréa Muller

jornalista

Juntos ou separados

Conheço casais que fazem tudo juntos, acordam na mesma hora, tomam chimarrão, caminham no canalete. Esbarro com eles nas livrarias comprando material escolar, no supermercado, em restaurantes, bares, loja de decoração, material de construção. Já vi homens nas boutiques acompanhando suas mulheres nas compras e também na academia. Será que fazem isso porque um depende financeiramente do outro e um vai comprar e o outro pagar? Será que são tão afinados que gostam de escolher juntos? Será que é a companhia agradável que os une ou é ciúme e por isso um nunca pode andar sozinho? Pode ser tudo isso e pode não ser nada disso.

Também vejo pares sempre separados. Homens sozinhos passeando com o cachorro, varrendo a calçada, buscando filhos no colégio. Mulheres igualmente. Sozinhas, sempre sozinhas.

Sheila, a minha amiga, fazia quase tudo separada do Fofo (o marido). Ela podia ser vista sempre esbaforida correndo rua afora atrasada, enquanto o fofo provavelmente estava deitado na rede. A Maria, outra amiga, dirige o carro, mas o resto todo é com o Caju (o marido). Na casa deles ele cozinha, lava, passa, e ela cuida de si. Entendem-se que é uma maravilha. Ele deposita tudo o que ganha na conta dela e ainda recebe mesada. Na casa da Joana, amiga da minha irmã os dois trabalham, ganham e se divertem. É tudo tão natural que parece que foram feitos um pro outro. Não existe nenhuma divisão de papeis, nem os horários e as tarefas estão coladas com imã na porta da geladeira. Mas tudo funciona que é uma beleza. É um tal de amor pra cá, amor pra lá. Não existe cobrança, só cumplicidade. Ninguém tira satisfação de ninguém porque mesmo sem dizer sabem o que cada um deve estar fazendo e a que horas.

Conheço outros que moram em cidades diferentes por circunstâncias momentâneas. Ligam-se toda noite antes de dormir. Coisa querida. Mas não é tão querido assim não. É controle puro e serve para garantir que o carro já está na garagem e o portão trancado. Hora de nanar. Boa noite Mery Ellen. Boa noite John Boy.

Qual o verbo adequado a ser empregado: singular ou plural? Vamos tomar um cafezinho ou eu vou tomar um cafezinho, você quer também? Estar com alguém é fazer tudo junto? Tudo separado? Meio a meio?

Depende. Fazer arroz tem receita? Diria que não é bem receita, mas truque, segredo, é o tal sazon da propaganda que quer dizer simplesmente feito com amor. Cada um sabe de si. Pode-se estar sempre acompanhada, mas no fundinho sozinha, ou não.


 

Andréa Muller

jornalista