segunda-feira, 24 de maio de 2010

Mosaico

Escrever é como criar um mosaico. Pode ser pequeno, grande ou enorme, sob encomenda ou de improviso, é uma reunião de palavras que ganham vida própria. Devem fazer sentido para quem escreve e quando fazem para quem lê é o melhor dos mundos. Escrever é compartilhar em um estalar de dedos. As palavras alcançam fronteiras, viram independentes. São seus filhos mundo afora, sendo lidos por outros olhos, ditos por outras bocas, amados, odiados, admirados, desejados.

Mosaicos e palavras. Outro dia um colega perguntou a respeito de uma das minhas crônicas. É inspiração ou é constatação? Era a segunda opção.

Ofício, profissão, ocupação, paixão. Você faz o que gosta? Está onde está porque chegou ou batalhou cada centímetro. Quem te leva é a vida ou é o vento, estás de mãos dadas com alguém ou sozinha? Tens quantas mãos para segurar ainda? São mãos queridas, te fazem bem, são boas de pegar, novinhas ou vividas? Segure-as com delicadeza e ternura para que elas possam sempre estar por perto.

Ditado antigo diz: "Se fizeres o que gosta não vais trabalhar um dia sequer". Escrever é isso. Ler também. Mas não é nenhuma barbada. Tem dias que não engrena, que nada parece fazer sentido, o mosaico não sai do chão. Do nada me vem à cabeça uma canção antiga da Elis Regina – Casa no Campo. "Eu quero plantar e colher com a mão a pimenta e o sal". Virgem Maria, meu mosaico hoje está sem pé nem cabeça. Será?

Fui surpreendida com o livro de Marcel Boher chamado "Nadismo – uma revolução sem fazer nada". Além do livro há um site e um clube que existe desde 2006. De lá pra cá, mais de 60 encontros já foram realizados em praças de inúmeras cidades como Porto Alegre, Gramado, Rio de Janeiro, Florianópolis e até fora do país. Para que todos encontrem o local do nadismo o autor coloca um cubo branco bem grande no local. A sessão dura cerca de 45 minutos.

O livro é franco e dolorido. Sem dó nem piedade o autor nos coloca diante de sessões involuntárias de psicoterapia. "Esse tempo que parece tanto nos faltar é nada menos do que nossa vida passando". É ou não é verdadeiramente verdade essa afirmação? "Existem vários aspectos da realidade que tem um ponto limite do qual não é possível avançar ou no qual qualquer acréscimo já não representa diferença alguma". Essas duas frases valeram o livro inteiro e devem me fazer pensar por pelo menos mais uma década porque fizeram imenso sentido para mim.


 


 


 

Andréa Muller

Jornalista

 

quarta-feira, 12 de maio de 2010

A Terapia da Consideração

O que é ter consideração? O Aurélio diz que é “importância dada a alguém, respeito, deferência, estima. Também é “reflexão, raciocínio”. Então, proponho uma reflexão sobre a consideração. Eu marco um encontro com você às 15h e simplesmente não apareço. O que é isso? Simples, falta de consideração.
Eu sou sua grande amiga, vivo na sua casa, telefono semanalmente, apareço para tomar um chimarrão, compartilho coisas importantes com você e derrepente, não mais do que derrepente eu sumo do mapa sem dar explicação. Não digo absolutamente nada e instaura-se entre nós um silêncio profundo. Silêncio quebrado por uma das partes que, sem saber, segue na normalidade. Telefona e cai na caixa postal, liga de novo e cai, novamente, na caixa postal, liga e ninguém atende. Quando consegue, ouve uma conversa mole, um lero lero que não restaura a solidez anterior de um relacionamento que parecia escrito nas estrelas. Neste caso, e em muitos outros, falta tão simplesmente consideração.
Sou cliente do salão de beleza a mais de uma década. Faço luzes sempre com o mesmo profissional. Chego dez minutos atrasada e ele não me atende. Duplamente uma tremenda falta de consideração.
Eu combinei que você vai me quebrar um galho daqui a seis meses, portanto com bastante antecedência. Ficamos acertados, de boca, na confiança, na consideração. Ai quando se aproxima a hora eu ligo pra você e seus planos são outros. Eu estou na freeway te esperando e você pegou a Tabaí-Canoas. Liberdade é bom e eu gosto também. A escravidão já acabou faz tempo. Mas faça-me o favor, avise que você pretende tomar outro rumo.
Tem que ser muito macho para ter consideração, mas não é impossível. Bastar querer. Não me venha com conversa falsa de que não deu tempo, não conseguiu, esqueceu. Tenha vergonha na cara e assuma: você esqueceu foi à consideração. Se fosse há 40 anos eu até concordo. Não havia celular, internet, email, Orkut, face book, essa parafernália toda que é capaz reunir uma galera em dez minutos.
Eu continuo acreditando nas pessoas, mas quando sou surpreendida pela falta de consideração eu sinto golpes no estômago, fico fula da vida, desacredito um pouco na espécie humana porque para causar decepção nas pessoas devemos ter alguma razão bem forte. Eu prefiro que me digam: olha não vou aparecer porque não estou afim, tenho coisa melhor para fazer, recebi outra proposta, não concordo com suas idéias e por ai vai. Falta de consideração é muito feio, faz alguém perder tempo desnecessariamente.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Te espero

Estamos sempre esperando alguém ou alguma coisa. Espero a Carla com um espumante bem gelado e um incenso de pachouli. Espero a Valentina com muitas folhas de papel em branco e milhões de canetinhas e lápis muito coloridos. Espero a Laura com um pequeno mimo, pode ser um novo livrinho, uma cartela cheia de adesivos de bichinhos ou um pacote de merengues frescos. Se esperá-la com merengues é certo que eles serão misturados com creme de leite, Nescau e virarão uma deliciosa sobremesa. Espero a Raquel com uma trufa, a Saskia com uma pizza de branquinho, minha mãe com um doce ninho.

Espero a Márcia cheia de saudade porque ela vem de longe e pouco. Espero a Japa, o Marco e o Antoninho com uma nostalgia sem tamanho porque vivi com eles momentos realizadores demais. Espero a Miche com o coração aberto porque tenho tanto cumplicidade com ela que não preciso medir nenhuma palavra. Espero a Misa com uma listinha nas mãos cheia de encomendas e uma vontade absoluta de falar tudo. Espero de mão no bolso e espero de braços abertos. Espero o ônibus, o avião, o trem, o táxi. Espero com e sem limites, com e sem graça.

Espero, também, na rede, mansa e manhosa. Espero de banho tomado, tomando uma taça de vinho tinto encorpado. Espero em silêncio. Espero apressada arrumando tudo para receber no maior capricho. Espero cansada, louca por um colo. Espero pronta pra briga, fula da vida, com um discurso na ponta da língua. Espero o dia tanto quanto a noite; espero o pedágio com nojo, espero na sala de espera folheando uma revista; espero as dores passarem com muito remédio, escuto o CD inteiro esperando Bandolins.

Espero a novela sentada na melhor poltrona da sala; espero o sono contando carneirinhos; espero o cachorro-quente ficar pronto com água na boca; espero o esmalte secar e a empregada chegar; espero o intervalo para correr pro banheiro; espero ansiosa a sinaleira abrir, a fila andar, o despertador me acordar. Espero o dia começar com uma caneca de café, espero que a manteiga derreta no pão quente.

Espero a sexta-feira mais do que a segunda; espero o Natal mais do que o Ano Novo, o outono muito mais do que o inverno. Espero o sol mais do que a chuva e do vento espero apenas as folhas lindas de plátanos cobrindo as ruas.

Espero flores, telefonemas, e-mails e convites. Espero sorrisos e abraços apertados. Espero a vida todos os dias e ela sempre chega. Que bom.

sábado, 1 de maio de 2010

Culpados

Foi destaque nos noticiários a briga entre dois burros velhos em um grande supermercado da capital. O motivo teria sido o estacionamento em uma vaga destinada a deficientes físicos por um homem que não tinha deficiência alguma. Rolou um xingamento que teria começado no estacionamento e acabou na fila do caixa quando, coincidentemente, ambos se encontraram novamente. Além de se xingarem partiram para a agressão física com o lançamento de objetos e, parece que algo de ferro atingiu a cabeça de um deles. Os caros protagonistas tem, cada um, a sua verdade. O machucado diz que avisou o outro de que ele não poderia estacionar naquela vaga. O que estacionou diz que o fez sem intenção, por pura pressa.
Aquele que tinha o machucado mais visível foi parar no hospital. A foto dele com o cérebro enrolado era realmente comovente e a sua versão bastante convincente. Com apenas essa versão muitas pessoas fizeram seu próprio julgamento. Um foi absolvido e o outro execrado em praça pública. No dia seguinte o jornal publicou a foto e a versão do outro. Embora ele não estivesse com a cabeça enfaixada, também tinha cara de bom moço e a sua verdade para contar. “Transformaram-me em um monstro troglodita, coisa que eu não sou” disse.
Quem está com a razão? Aqui se aplica o velho ditado de que em briga de marido e mulher ninguém deve meter a colher. Ora, ora, pode até haver gente tão louca que saia jogando barra de ferro em outra de graça. Pode, mas é pouco provável. Para haver briga tem que haver um estopim. Para começar o fogo tem que haver a faísca. Para haver julgamento é preciso conhecer as versões. E, mesmo assim, pode haver dois culpados.
No caso do mendigo que acordou coberto de spray prata, quem tinha razão? E, na briga de médicos em Goiânia que acabou levando o bebê à morte? Alguns fatos são tão cristalinos que de cara a gente sabe quem é o mocinho e o vilão do enredo. Mas outros são quebra cabeças difíceis de montar.
O perigo está na força que a opinião pública tem e no julgamento antecipado que fazemos, quando o quebra cabeça ainda não está nem na metade. No caso desses senhores, acho que a vergonha deveria estar incomodando muito mais. Que coisa mais feia sair nos jornais por uma coisa tão pequena que poderia ter sido resolvida simplesmente com educação. Pior é que a falta deste quesito é, muitas vezes, o pavio da vela que acende.